Em Gostinho de Amor1, a comédia romântica é um atalho.
Um desvio calculado, já que a via principal dá acesso à alameda das fábulas.
Isso mesmo. Você não leu errado. Gostinho de Amor é, essencialmente, uma fábula moderna2. E com os pés nos contos de fadas, vai. O tema? Mais do que o romance, a vida. A vida que exige mais gosto, mais cor, mais sabor.
Passando pelo excesso e esbarrando na escassez, há muitas formas de se perder o paladar; não no sentido funcional, mas no das papilas gustativas da alma. O drama mostra, sobretudo, o momento em que o gosto, entorpecido pela insensibilidade adquirida, já não distingue a mentira contada aos outros daquela que se conta a si mesmo. Essa é a mensagem: uma costura resistente, oculta no avesso da história.
Chamar de romance é reduzir a intenção dos criadores. Há, sim, uma atmosfera de paixão, mas ela não se encerra na expectativa de um beijo. O que se constrói aqui é um sonho a oito mãos, um gesto coletivo, costurado por afinidades, convicções e um desejo comum de criar algo que ultrapasse as vãs ambições. E, para que esse propósito não se perca, precisa escapar ao sabor volátil das paixões e ser guiado por um honesto autoexame de consciência.
Vale aqui abrir um parêntese sobre o que chamamos de “fábula contemporânea”.
Muita gente associa fábulas apenas a animais falantes e lições morais simplificadas. No sentido estrutural, contudo, uma fábula é qualquer narrativa simbólica que utiliza personagens e situações arquetípicas para revelar verdades universais.
O que Gostinho de Amor faz é deslocar o velho conto para novos terrenos: onde antes havia floresta, agora há uma cozinha; onde pulavam coelhos e raposas, caminham chefs e donos de restaurantes. Os desafios morais permanecem e os personagens, ainda que humanos, representam ideias e valores em tensão. A alegoria, aqui, não é um artifício didático, mas uma lente sensível sobre os afetos, as escolhas e os sabores da existência.
Para ilustrar isso, vale comparar com três fábulas de naturezas distintas:



Na clássica O Corvo e a Raposa, de Esopo, temos a vaidade punida pela bajulação. A moral é explícita, o cenário é simbólico e os animais funcionam como arquétipos de comportamento. Tudo é breve, condensado. Um espelho instantâneo da natureza humana.
Já em Ratatouille (Pixar, 2007), no reduto cinematográfico, temos uma fábula moderna em que um rato sonha em ser chef. A metáfora é mais complexa: o protagonista desafia estereótipos, as hierarquias rígidas da alta gastronomia e até o próprio conceito de “quem pode criar”. Há humor, afeto, crítica social e, no centro, uma moral sobre autenticidade, criatividade e coragem. Tudo isso sem perder o sabor emocional de uma fábula.
Edward Mãos de Tesoura (1990) transita entre os dois gêneros, sendo um conto de fadas pela sua estrutura narrativa e atmosfera fantástica, e uma fábula pela sua função moral e simbólica. Essa ambiguidade é comum em obras modernas que reinterpretam tradições clássicas para tratar de temas contemporâneos. O filme dirigido por Tim Burton, mostra a história de um humanoide inacabado, criado por um inventor, que vive isolado até ser acolhido por uma família suburbana. Dotado de lâminas no lugar dos dedos, Edward encanta a comunidade com seus talentos, mas acaba rejeitado por ser diferente. A história, com tom fantástico e melancólico, usa arquétipos clássicos para explorar temas como aceitação, solidão e identidade, oferecendo uma lição simbólica sobre a dificuldade de se encaixar.
Gostinho de Amor caminha por esse mesmo beco criativo: um espaço onde comida, identidade e transformação se entrelaçam. É nesse ponto que o drama revela sua alma de fábula. A ênfase na jornada pessoal dos protagonistas, e que trouxe o Japão para a história, não está ali por acaso. A mudança evocada pela transição de cenários (da Coreia para o Japão) impacta não só a trajetória dos protagonistas, mas a de todos os personagens.
A própria vinheta3 de abertura mastiga essa lição: vários corações unidos por um mesmo objetivo: revitalizar um restaurante escondido num beco de Jeonju. O sonho, enfim realizado, é servido ao fim da vinheta com direito a sousplat. Uma clara sinalização de que o esforço dos quatro mosqueteiros do restaurante Jungjae sempre foi, de fato, o legítimo prato principal. Um por todos e todos por um. O drama não conta. O drama mostra. Tanto que são justamente os quatro personagens da abertura os encarregados de encerrar esse nosso conto gastronômico.
O restaurante como “coração da fábula” é uma metáfora poderosa que articula espaço físico, afetivo e simbólico em uma só imagem. Em Gostinho de Amor, o Jungjae não é apenas um cenário: ele é o ponto de convergência das jornadas, o lugar de transformação e o recipiente simbólico onde os valores da história são cozidos, testados e servidos. Vamos aprofundar:
O Restaurante Como Coração da Fábula
Nas fábulas clássicas, o “espaço encantado” cumpre uma função clara: é onde a mudança acontece. Pode ser uma floresta, um castelo, uma caverna. Um território fora da norma, onde leis comuns cedem espaço ao simbólico. No caso de Gostinho de Amor, esse espaço é o restaurante Jungjae.
Ele não é apenas cenário:
É lar simbólico. É coração.
Por que coração?
Porque é ali que tudo pulsa emoções, conflitos, reconciliações.
Porque acolhe todos os personagens, mesmo os feridos, mesmo os deslocados.
Porque representa o centro vital da história. Não só no plano emocional, mas no estrutural: é nele que a fábula se costura.
Cada personagem, ao passar pelo Jungjae, se transforma.
Ali, a comida ganha valor ritual.
O ato de cozinhar deixa de ser técnico e passa a ser relacional.
Servir uma refeição torna-se uma forma de dizer:
“Eu existo. E me importo.”
Essa função simbólica do restaurante também ecoa em outras fábulas contemporâneas. Em Ratatouille, é onde o impossível acontece. Em todos esses casos, cozinhar é também narrar e o restaurante, o palco onde se conta a própria história.
No caso de Jungjae, temos um diferencial delicado: o restaurante não pertence a um herói específico. Ele é compartilhado. É um ambiente relacional, sustentada por quatro protagonistas que, ao se unirem, fazem do Jungjae mais do que um lugar: fazem dele uma ideia.
Jungjae é o coração da fábula porque representa:
O sonho coletivo
A busca pela autenticidade
A cura através da convivência e do afeto
Agora vamos focar nos habitantes do Jungjae: Mo Yeon-joo, Han Beom-woo, Ju Myeong-suk e Sin Chun-seung. São eles os nossos heróis.
Claro, até o desfecho, nenhum deles está pronto. Como convém às alegorias, para sair do ponto A (a aspiração) e chegar ao ponto B (o final feliz), todos, sem exceção, precisarão empreender uma jornada, enfrentar obstáculos e, é claro, contar com a ajuda de uma certa mediação mágica4.
Todos se afastaram da situação cômoda do início, cada um com objetivos distintos.
No infográfico a seguir, revelamos o caminho dos personagens com base nas funções narrativas mencionadas acima.
Quando o herói é o grupo: a força de uma jornada compartilhada
É um time de heróis, não é mesmo? É exatamente isso que vemos aqui. A função heroica é compartilhada e, muitas vezes, alternada ao longo da jornada, o que enriquece a trama com diferentes olhares, experiências e formas de crescimento. A proposta é justamente essa: construir juntos a jangada e embarcar nela rumo ao desconhecido.
A partida, o combate, os obstáculos e o reconhecimento nascem das ações e emoções de quatro corações. Ainda assim, o percurso em busca do “anel sagrado” é coletiva. E mesmo que a recompensa venha de forma única para cada um, é o caminho trilhado em conjunto que torna tudo significativo.
Mas se liga na metáfora “jangada”. Para os bons observadores, os cenários por onde essa turma passou foram quase sempre apertados: física e emocionalmente. Começou no próprio Jungjae, claro. Mas o divisor do curso trilhado por nossos amigos foi o trailer onde todos ficaram juntos para participar de uma disputa culinária de comida de rua. Um espaço pequeno, quente, cheio de cheiros, risadas, tensões e improviso.
Antes disso, já tínhamos visto os trailers emocionais; nas confraternizações em botecos depois de um dia puxado, nas ruelas estreitas, nos vínculos improvisados entre uma missão e outra. Aqui, a ordem funciona no modo tudo junto e misturado.
E é justamente nesse “aperto encantado” que encontramos a deixa perfeita para entrar no reino mágico de “Gostinho de Amor”.
Jeonju: o reino mágico onde a alma ferve em fogo brando
Reflexões culinárias e narrativas sobre o papel da cidade em Tastefully Yours
Em Tastefully Yours, Jeonju não é apenas cenário. É um personagem disfarçado de paisagem. Uma cidade que, à primeira vista, parece pequena demais para grandes transformações, mas que se revela exatamente o lugar onde os personagens se reinventam.
Na chave dos contos e fábulas, Jeonju é o reino mágico, e também estranho. Um espaço de testes e provações. É para lá que Yeon-joon foge em busca de refúgio, mas acaba sendo “achada” por um grupo de malucos que não apenas a ajudam a revitalizar o restaurante, mas também o edifício de si mesma.
Em Jeonju, Beon-woon é arrancado de todas as comodidades da cidade grande, inclusive das financeiras, às quais sempre esteve acostumado. É um território fora da sua zona de conforto, que lhe impõe desafios e, justamente por isso, provoca transformações.
Myeong-suk e Chung-seun já estavam lá, imóveis, fixos no espaço, fazendo de Jeongjun um depósito emocional de medos, paralisias e silêncios herdados.
Mas essa cidade histórica, com seus becos que dificultam o trânsito e facilitam os encontros, não é apenas um espaço simbólico. É também uma proposta estética e, mais profundamente, ética. Um laboratório vivo do fenômeno newtro5, onde tradição e inovação fervilham no mesmo tacho.
Hanoks centenários abrigam chefs com ideias fermentadas em Paris. Bibimbaps ganham o toque autoral de quem tem memória no paladar. E o silêncio da madrugada tem gosto de gochujang e saudade.
Jeonju é onde se cozinha com memória, se ama com timidez, e se cresce por convivência.
E talvez a pergunta mais profunda que o drama nos deixa seja essa: em que Jeonju da sua vida você está escondido agora, e o que ela está tentando te mostrar?
Enquanto isso, na dramalândia…
Com o desfecho do drama, a comunidade kdrameira transformou-se no reino da insatisfação. Entre os reclamantes, houve quem sugerisse novos temperos para a narrativa, como forma de deixá-la mais ao gosto do freguês. Selecionamos algumas dessas sugestões para testá-las e verificar se se encaixam no que foi apresentado.
A primeira: Sapporo não devia ter acontecido, pois apenas prolongou a trama com um triângulo amoroso que ninguém pediu. Dentro dessa crítica, já cabe o temperamento frio da heroína, também alvo de queixas.
A segunda: o protagonista teria demorado demais para ser revelado como farsante.
Terão outras? Veremos.
Na próxima etapa, vamos responder a essas questões sem inventar nada fora do enredo.
Continua…
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Trata-se de uma alegoria, lembra? Já analisamos Celebrity cuja narrativa se estrutura justamente sobre esse recurso.
A vinheta animada é praticamente um resumo da obra e apresenta a proposta do drama com clareza. Sem tempo para assistir ao drama na Netflix? Então confira a abertura neste link.
Aspiração, viagem, obstáculos, mediação mágica e final feliz são cinco elementos fixos que compõem a estrutura dos contos de fadas e contos maravilhosos, conforme abordado no livro Literatura Infantil: Teoria, Análise, Didática, de Nelly Novaes Coelho. Essa análise se fundamenta no modelo estrutural proposto por Wladimir Propp em Morfologia do Conto Maravilhoso.
A onda newtro na Coreia do Sul é mais do que um modismo é uma forma de reinventar o passado com os olhos no presente. Trata-se de um movimento cultural que resgata referências de outras décadas para recriá-las com frescor e originalidade. Entre os jovens, que se inspiram em tempos que não viveram, o newtro virou uma espécie de nostalgia estilizada. Nos k-dramas, essa tendência aparece com força: produções que exploram visualmente o século XIX ou os anos 70, 80 e 90 ganham uma roupagem moderna, misturando estética retrô com linguagem contemporânea, como quem olha para trás sem perder o passo do agora.